quinta-feira, 23 de agosto de 2012
JORNAL `A JANELA: Origem da família Mota
JORNAL `A JANELA: Origem da família Mota: Mota é um apelido de família da onomástica italiana de origem toponímica cuja origem é pré-romana. Este sobrenome possui muitas variantes, ...
terça-feira, 21 de agosto de 2012
domingo, 19 de agosto de 2012
A Mala
(arremedo de romance escrito numa viagem pela Europa)
Carlos D. Mota Coelho
Com muito custo cheguei à esteira de bagagem e vi a minha
mala. Todas as demais tinham sido retiradas pelos passageiros que, ao contrário
de mim, não tiveram a desventura de se sentarem na última fileira de poltronas,
nem se perderem pelos labirintos daquela imensidão de aeroporto, por conta da
mais completa ignorância, sobretudo quanto àquele ininteligível idioma. Que
alívio ao vê-la ali, ainda que absolutamente solitária! Esperei que a esteira
rolante a trouxesse bem perto de mim, enquanto, pelo vidro, era possível
perceber que a temperatura externa estava muitos graus abaixo da sentida por
mim naquele saguão artificialmente aquecido. E assim que ela chegou agarrei-me
à sua alça e tentei retirá-la daquele tapete giratório de metal, louco por
abri-la e dela retirar o meu casaco de inverno. Num primeiro momento ela nem se
abalou e quase que me levou junto. Com muito esforço consegui arrebatá-la e
jogá-la ao chão, sem entender aquele descomunal peso, que logo atribuí não a
ela em si, mas a mim mesmo, supondo-me enfraquecido pela extenuante viagem e
pelo fato de que eu simplesmente dormia a cada instante em que os comissários
distribuíam a comida de bordo. Apesar do
peso, eu estava certo de que ela era minha, a mesma que eu portava quando do
embarque, recheada com as minhas roupas, sapatos, acessórios, uma tora de fumo,
algumas cumbucas de palha e um pouco de feijão e farinha, necessários à
eventualidade de me faltar comida, eu que viajei sem um tostão no bolso.
Temeroso do frio lá fora, logo cuidei de levá-la a um canto, longe da
bisbilhotice alheia, para que dela eu pudesse retirar um casaco mais quente do
que aquele em que eu me achava metido. Reuni então todas as forças que me
restavam e consegui arrastá-la rumo a um local ermo, próximo a um vão de
escada. Se eu tivesse dinheiro para alugar um, com certeza eu teria me valido
do carrinho de bagagem. Mas não! Olhei então para um lado e para outro, rompi o
lacre de plástico e puxei um pouquinho o seu zíper. Mas assim que enfiei a
minha mão em seu interior, certo de que alcançaria o meu desejado casaco,
deparei com algo rijo, feito tijolos ali arrumados. Passei a mão de um lado
para outro e a mesma sensação tátil. Tentei mergulhá-la mais um pouco e nada de
sentir a maciez das roupas ou os grãos de feijão dentro de um saco. Gelei!
Imaginei alguma pegadinha do amigo que me facilitou a fuga, introduzindo nela
os tijolos de cerâmica que imaginava estar em seu interior. Mais gelado fiquei
ao imaginar estar ali tijolos de maconha ou cocaína, por mim trazidos feito
mula, ludibriado por aquele bando de vagabundos que me estimulou a fugir de meu
país. Quase que a abandonei ali, mas um funcionário do aeroporto, vendo-me
naquela aflição e supondo que era por conta de seu peso, se prontificou a me
ajudar a retirá-la. Fechei imediatamente o seu zíper e a companhia daquele
funcionário aliviou a minha tensão ao transpor o portão da alfândega. Logo me
vi no saguão de saída e mais uma vez tencionei abandonar aquela maldita mala.
Em meio àquele vaivém de pessoas minha cabeça girava a mil, ora imaginando a
abordagem de seu verdadeiro dono, algum passageiro que levou a minha mala
pensando que fosse a sua, ora imaginando topar com o destinatário daquela
muamba, pronto a me apagar em algum arrabalde próximo. Criei coragem e dela
então me afastei, pensando em não vê-la nunca mais. Mas quando estava prestes a
ganhar a porta rotatória de saída, uma mulher me alcançou, dizendo palavras por
mim incompreendidas, mas gesticulando em direção à maldita, como que a dizer
que eu havia me esquecido dela. Voltei para junto dela e ali fiquei por alguns
instantes parado, sem saber que rumo tomar. Mas assim que a bisbilhoteira se
afastou, tentei novamente da mala me desvencilhar, levando-a até o banheiro
próximo. Com muito custo consegui arrastá-la até o reservado. Chaveei a porta e
num arranco abri o seu zíper e que surpresa: maços e mais maços de dinheiro, de
suas profundezas à superfície! Não me contive e dei um grito, seguido de toques
na porta, dados por algum usuário ou pelo faxineiro que me viu entrar. Então me
contive, dela arrebatei alguns maços de notas e os enfiei nos bolsos da calça.
À saída, chamei um carregador e entrei numa loja, onde comprei o mais caro
casaco e um chapéu. Ao sair, um susto, pois o carregador de malas não estava
ali à porta. Vi então a minha brevíssima vida de milionário virar pó. Olhei ao
redor tentando encontrá-lo, mas a hipótese de ele ter sido pego em meu lugar me
aliviou. Além do mais, aqueles maços de notas por mim apanhados já eram
suficientes para eu me manter por muitos dias, até que eu arranjasse um emprego
ou um trambique. Dando-a resignada e propositadamente por perdida, apressei o
passo rumo à porta, quando fui alcançado pelo carregador que ma devolveu
aparentemente intacta, sem que eu entendesse bulhufas de sua tentativa em
justificar aquele aparente desaparecimento seu. Remunerei-o regiamente, quando
ele, por conta de sua falta, sequer imaginava que eu fosse o (lhe) pagar. Logo
cheguei à imensa fila de táxis, apalpei o bolso e dele saquei a minha carteira
de cigarros, acendi um e me pus a apreciar aquela paisagem para mim tão
diferente. De repente, outro susto, pois de um carro que ali estacionou desceu
um sujeito mal encarado carregando uma mala idêntica à minha ou a ambas. Meu
coração disparou em pensar em ter que devolver aquela ao pé de mim, recebendo a
recheada de molambos, trastes e feijões. Aos poucos ele foi se aproximando de
mim e eu já me antecipando em gestos de devolução, mas ele, embora reparando a
minha mala, passou direto, o que me deu a certeza de uma mera coincidência.
Aliviado, apaguei o cigarro e mirei em direção à extensa fila que dava voltas
em torno do ponto de táxi. A cada instante todos da fila davam um passo à
frente. De repente, num de seus anéis concêntricos, deparei com uma estupenda
loira com várias malas, uma delas idêntica à que eu carregava. É ela, pensei! Como eu me achava ainda longe dela, arrefeci
a vontade de me mandar daquela fila, mas a chegada de um vetusto senhor junto à
loira, com pinta de que havia percebido o engano quanto às malas, me fez mudar
de decisão. Saí então daquela fila, fui até a banca de jornal, comprei um guia
da cidade e ali permaneci até que aquele casal embarcasse em algum táxi. Só
então retornei à fila e finalmente consegui apanhar o meu. No guia apontei para
o motorista o nome do hotel, o mais caro daquela metrópole e para ele me
mandei. Mas ao transpor o seu chiqueréssimo lobby, quem estava ali fazendo o
check in? A loira e o coroa que eu havia visto no aeroporto! Aí eu pensei: desta vez vou ver de volta o meu saco de
feijão. Cansado de tantos reveses tomei a decisão de permanecer ali, pronto
para o que desse e viesse. Dirigi-me então ao atendente ao lado do casal, sem
me preocupar com o raio da mala. Preenchi a ficha de ingresso e, pasmem, subi
pelo elevador justo na companhia dos dois e de suas malas. Desci primeiro,
entrei na suíte, tomei um belo banho e quando estava prestes a abrir a minha
mala, a campainha estrilou. A porta abri e com quem deparei? Com a loira
dizendo no bom português que havia pegado a minha mala e que queria ma
devolver, desde que eu ficasse com ela também. E com a mala e com a loira
fiquei, numa paixão que durou enquanto durou aquela dinheirama toda, ambos
(dinheiro e loira) pertencentes ao coroa!
Chorando o leite derramado
A prodigalidade sempre foi a minha marca neste bizarro
Planeta Terra. Quando bebê –dizia a minha mãe- eu mamava, cuspia fora o leite
e, instantes depois, chorava desesperadamente sugando seus vazios peitos. Tudo
que eu ganhava era imediatamente dado ao primeiro que mo pedia, o que me
obrigava a estar sempre tentando obter coisas e vantagens, fosse pela via
honesta, fosse por meio de astúcias e larapices. Para algum sossego meu, o fato
de eu arrebatá-las e dá-las imediatamente me livrava de flagrantes e
inquéritos, mercê da inexistência, em meu poder, do produto surrupiado. Mas
como os resultados de meus trambiques sempre eram achados na posse de amigos e outros
donatários, eles – e não eu – é que paravam nas celas das delegacias. Ingratos,
diziam de mim cobras e lagartos, mas invariavelmente não perdiam os bens por
mim dados, graças às suas má-caratices, aliadas à incompetência da polícia e à
morosidade da justiça. E, assim que se empanturram e enricaram, não mais viram
utilidade em me terem por perto e decidiram me meter naquele avião, duro de
dinheiro como sempre vivi. Sacanas, sequer me preveniram de que em minha
bagagem haviam colocado, junto à tora de fumo e as cumbucas de palha, o raio de
um canivete que, na hora do embarque, quase me levou à prisão, com certeza
graças a esta cara de árabe que Deus ou Alá me legou. É bem verdade que Eles,
em suas infinitas bondades e santidades, me bafejaram com a sorte na troca das
malas. Mas, apesar de Suas onipotências e grandezas, não cuidaram de extirpar
de meu jeito de ser a minha mania atávica de dar tudo pros outros. E não fosse
a minha crônica abertisse de mão eu teria maços e mais maços de dinheiro até o
fim de minha vida. A sorte é que, esvaziada a de dinheiro, me restou a minha
verdadeira mala e, em seu interior, o meu saco de feijão! Sorte é que naquele
Continente em que me encontrava não se come feijão ou farinha! E, inexistindo quem goste de comê-los, não tinha
como os dar, o que constituiu a sorte de minha barriga, mas o concomitante azar
para o exercício regular do meu vício de tudo dar! Prova disso foi o
comportamento daquela loura. Bem que ela poderia ter continuado comigo, mesmo
trocando as caras iguarias e bebidas finas da Alfama, do Moulin Rouge, das
Ramblas ou da Trastevere por uma suculenta feijoada! Mas nem a culpo por isso,
pois como dizem os cientistas é muito difícil mudar de hábitos culturais e mais
difícil ainda mudar de hábitos alimentares. E como não consigo me livrar do
hábito ou vício da prodigalidade; E como o exercício da prodigalidade supõe
necessariamente que eu tenha algo a dar; E como a aquisição de coisas a serem
dadas implica herdar, trabalhar ou delinqüir, ou eu voltava praquele Cu de Gato
de onde fui expulso ou teria que ir à luta no Velho Continente. Monoglota que
sou, poucas alternativas existiam a meu alcance, sem contar a crise econômica
que se abateu sobre os locais e que exponenciou o número de pedintes,
prostitutos e batedores de carteira. Bem
que fui confundido com um festejadíssimo jurisconsulto e convidado para
palestrar numa vetustíssima faculdade à beira do Mondego. Mas assim que abri a
boca, todos os assistentes rodaram as suas capas pretas e sonoramente me
vaiaram. Rápido e apavorado, esgueirei-me por íngremes e tortuosos becos e,
três dias de sofrida caminhada, cheguei a um desmantelado mosteiro. Roto e
esfarrapado que me encontrava, fui admitido como frade menor, com a função de
esvaziar urinóis em troca de sobras de tripas e vinhos avinagrados pelo mau
hálito dos frades maiores. Tudo ia muito bem até o dia em que perceberam que eu
não sabia declamar uma Ave Maria sequer, muito menos o Padre Nosso. Puseram-me
no olho da rua, mas logo arranjei uma boquinha de guia turístico, estreando
justo num misto de congresso científico, romaria e peregrinação, cujos
participantes eram advogados públicos, falantes da mesma língua que falo. O meu
serviço era ficar sentado na poltrona da frente de um ônibus, narrando num
microfone a história daquelas plagas pelos trajetos. Embora chutando nomes de
reis, rainhas e santos inexistentes, batalhas e milagres que nunca aconteceram,
inventando nomes de povoados e aldeias, tudo ia muito bem, mesmo porque, feito
eu, eles eram tão ou mais ignorantes daquilo que viam, sem contar que a maioria
dormia enquanto eu falava feito homem da cobra. Os que não dormiam reviravam e
admiravam as quinquilharias compradas ao longo do trajeto. Mas a minha
empulhação durou pouco, pois simplesmente os fiz subir a pé por uma
quilométrica ladeira, não levando em consideração que quase todos eram bem
erados, brabos e ciosos de seus títulos, cargos, prerrogativas e o escambau,
pois até ministro de Estado seguia naquela comitiva. Não sei se por caduquice
ou falta de educação, eles vaiavam quando deviam aplaudir e aplaudiam quando
deviam apupar. Então me mandei daquele ônibus, consegui uma carona e, em
seguida, uma vaga de valete de hotel a troco de dormida e comida. Mas qual a
minha danação! Escalado para acordar os hóspedes, fui à manhã seguinte à porta
da suíte de um deles e o chamei. Na primeira chamada, ele não respondeu e então
dei três toques na porta. Aí ele ralhou comigo: - não vou não! Aí eu disse “vai
sim” e o ameacei de retirá-lo à força daquele quarto, embora três vezes mais
pesado do que eu. Pois não é que o sujeito fazia parte da comitiva que me
expulsou do ônibus! Gelei e fui ao gerente pedindo a troca de função.
Mandaram-me então para a copa, onde eu julgava estar a salvo da ira daquele
grupo, sobretudo de uma procuradora bem magra, de cabelos pretos e curtos, que
a cada momento dava ordem unida e enquadrava os peregrinos, romeiros e
congressistas. Certa hora, porém, me vi na obrigação de ir ao salão de jantar
conduzindo uma bandeja de taças. Aí um baixinho meio careca, de posse de uma
garrafa d água, me pediu um copo. Como taça não é copo, ignorei o seu pedido e
ele ficou colérico e possesso. Outro, acho que o adjunto de ministro, pediu-me
uma garrafa de vinho e três taças. Atendi-o prontamente enchendo as três taças,
mas levando comigo o restante da garrafa de vinho. Ele, raivoso, ma pediu de
volta, não admitindo que errara no pedido, e ainda por cima me entregou à
gerência, pondo fim àquela brilhante carreira no trade hoteleiro lusitano. Corri
daquele hotel, da cidade e do próprio país, mas não houve jeito. Parecia
perseguição misturada à assombração, pois em cada local que eu ia trombava com
um ou alguns integrantes daquela mistura de congresso, romaria e peregrinação.
Na Torre Eiffel, vi um deles tentando escalá-la pelo lado de fora, certamente
para não pagar ingresso. Outra, em Montmatre, subiu no cimo de um altar e ali
tentou se sentar no lugar da santa, dizendo-se acima dela por se chamar Maria
Santíssima. Um fez o sinal da cruz no túmulo de Napoleão, pensando que fosse o
do Papa Inocêncio III. Outra tirou blusa e sutiã, e invadiu uma apresentação de
can-can com os seus peitos murchos. Um bem velhinho deu de pescar em pleno Rio
Sena, pensando que fosse o São Francisco. Em Versalhes, uma pirou, dizendo que
era Maria Antonieta, enquanto todos diziam que ela havia ficado em Pernambuco.
Um, em plena Opera, invadiu o palco e começou a cantar Assum Preto. Um belo
casal, num chique restaurante na Champs Elisees, queria por que queria comer
gueroba com pequi. No Louvre, um bem tirado a conhecedor de arte brigou com o
guarda dizendo que a Monalisa ali exposta não passava de um retrato 3x4. Um, ao
ouvir as genialidades de Leonardo da Vinci, disse, vermelho a custa de Viagra,
que conseguia dar o dobro do que ele: quarenta sem tirar de dentro! Outra
comprou todo o estoque da Galeria Lafayette, lotando centenas de trens do metrô
e fazendo oscilar fortemente a cotação do Euro. Aí eu não tinha como ficar mais
ali e me mandei para um país próximo, justo no dia da beatificação de um novo
santo. Mas como faltava ao novel beato a realização de mais um milagre, resolvi
dar o meu testemunho de fé, contando toda aquela saga por que passei e dizendo
que foi a fé no beato que me impediu de ser levado para o hospício ou
cemitério. E o Papa, reconhecendo tudo aquilo como milagre, na mesma hora
assinou a portaria de canonização. Foi sorte, pois minutos depois comecei a ver
a Praça de São Pedro invadida por aquele grupo que tanta dor de cabeça me deu.
Por conta do milagre, agora virei pastorinho e quiçá um dia serei também
canonizado e receberei visitas de romeiros e peregrinos do mundo inteiro, menos
aqueles vindos de lá do Brasil! Enquanto, todavia, esse dia não vem, não posso
ficar assim movido a uma ração de farinha e feijão.
Nem mel nem cabaça
Nada de dinheiro, fiquei no pelo e osso e com uma descomunal
barba, a ponto de ter sido várias vezes confundido com Bin Laden, mesmo ele
tendo sido morto dia seguinte à beatificação para cujo sucesso tanto concorri.
E por conta da confusão, cristãos não me aceitavam por conta daquela parecença,
nem muçulmanos me toleravam por conta da minha futura beatificação. De bom que
tal sosiedade com Bin Laden me proporcionou foi o convite que recebi dos
republicanos para que eu me passasse por ele. Tudo certo após eu aprender
algumas palavras em árabe, mas na primeira simulação de entrevista eu deixei
escapar o meu indefectível “uai”, mandando pra água abaixo a chance de amealhar
um monte de dinheiro. Resolvi então mais uma vez mudar de país, justo no dia em
que topei com um casal em lua de mel. Ele se dizia príncipe e ela plebéia, mas
a avançada idade do carro em que eles passeavam me sinalizava que não. Mesmo os
tomando por dois patifes tentando ludibriar um terceiro-mundista, compartilhei
com eles, fruto da minha prodigalidade, meus últimos grãos de feijão. Quiseram
que eu seguisse viagem com eles, mas menti que não possuía carteira de
motorista. Prometeram uma boquinha em seu suposto castelo e até um cargo de
primeiro-ministro, assim que a avó batesse a caçoleta e o pai renunciasse ao
trono, por conta da feiúra da madrasta. Tomei tudo aquilo por uma farsa e não
os segui. Mas dia seguinte, passando por uma banca de revista, vi ambos na
primeira página, bem assim a notícia de que eles haviam partido em lua de mel
para lugar incerto e não sabido. Num tablóide sensacionalista, uma polpuda
oferta a quem desse pistas de seu paradeiro. Voltei ao lugar onde os havia
encontrado, procurei, procurei até que vi ao longe, num ponto ermo da praia, um
casal entre beijos e amassos. Eram eles, pensei! Mas como os fotografar se eu
não tinha câmera ou um reles aparelho celular? Aproximei-me, certo de que eles
seriam amáveis como foram no encontro anterior e certo também de que eles, com
sua própria máquina, se deixariam ser por mim fotografados. Mas assim que me
viram faltaram me matar, fazendo gestos de que o feijão que os dei de comer
desarranjou seus intestinos. Putos, dali se mandaram e eu ali fiquei num bico
de vender picolés. Por muitos dias evitei passar por aquele ponto da praia em
que eu havia os encontrado, pois isso açularia em mim o ódio de não os ter
fotografado ou até mesmo seqüestrado, levando ambos à presença dos editores de
tablóides sensacionalistas. Mas uma semana depois, acabei por passar por lá,
quando num bilhete deparei a palavra Seychelles. De um turista consegui
emprestado um mapa e deles roubei um iate bem próximo ancorado e zarpei em
direção àquela ilha. Inteiramente analfabeto nas artes de marear, finalmente
bati com os costados numa que supus Seychelles. Assim que acabei de amarrar o
iate, uma voz conhecida bradou o meu nome. E quando voltei para trás, era a voz
da guia turística que havia sido minha colega no outro ônibus do
congresso-peregrinação-romaria de tão triste memória. E atrás dela todos
aqueles advogados públicos gritando e xingando. Mal desamarrei as cordas, ela
trepou no convés do iate e nos mandamos dali. Aí eu me pus a pensar quão
tortuosas são as rotas do destino. Quão incongruentes as coisas que me
acontecem, pois a bordo de um iate daqueles eu deveria estar em uma companhia
mais bela e mais gostosa do que a daquela insossa guia. Mas o mesmo destino que
traça tortuosas rotas acaba às vezes por nos levar a infernos, mas também a
paraísos. E foi o que aconteceu. Primeiro o inferno, ao sermos rendidos por uma
malta de piratas, os quais apesar de afastados do sexo por muitos meses, sequer
se interessaram pela colega guia turística. Mas ao paraíso, assim que eles nos
entregaram ao seu chefe e ele gritou: é o Bin Laden! E eu, dizendo que sim,
apresentei a guia como uma das minhas esposas. Deram-nos roupas limpas e a mim,
sabedores de que eu tinha muitas outras, um monte de mulheres, cabendo à guia a
primazia de conduzi-las naquele imenso harém, com direito a dizer que em tal
lugar viveu o Sultão Aladin XXVII, que na caverna tal escondia Ali Babá, tal
qual costumava fazer no microfone do ônibus. Àquela altura eu já era um homem
fraco em todos os sentidos, inclusive no sentido libidinal. Mas a posse de
tantas esposas tinha lá a sua vantagem, mesmo para um impotente como eu. A cada
noite eu me deitava com uma, mas não conseguia dar conta do recado. Ela, no
entanto, compreendia a minha falha, na suposição de que eu deitara antes com
todas as outras trinta e nove esposas. No início eu imaginava o chefe dos
piratas me entregando para os republicanos, como um troféu capaz de enterrar de
vez a reeleição democrata. Mas o tempo foi dizendo que infundadas eram tais
suposições, tal o carinho com que o flibusteiro me tratava. Certo dia, todavia,
ele chegou a mim cheio de dedos e nove horas para finalmente e muito
semgraçamente me propor uma troca: ele me daria sua arca de ouro em troca da
guia turística que ele supunha ser a minha primeira esposa. Topei na hora e,
dia seguinte, zarpei da ilha, sozinho, transportando aquele montão de ouro. Mas
nem bem chegado ao mar alto, os mesmos piratas me atacaram, jogaram-me no mar e
sumiram com navio e tesouros. A extrema magreza impediu que eu afundasse e a
falta de carnes que algum tubarão me comesse. E foi boiando por muitos meses
que finalmente bati os costados em uma praia. Nas noites inteiramente nuas de
nuvens, eu me extasiava com meteoritos, meteoros, planetas, estrelas, antigas,
novas e supernovas, anãs brancas, galáxias, além de objetos alados que eu não
conhecia, o que me permitiu compreender a teoria de Einstein. Mas todo aquele
conhecimento de nada me servia, pois uma dúvida apoquentava a minha cabeça. E boiando
e não tendo nada a fazer senão pensar, eu não cansava de me perguntar o que de
interessante havia naquela guia que eu não vi? Tudo se passava por minha
cabeça. Seria ela a preferida de algum milionário? Herdeira presuntiva de algum
trono de uma monarquia prestes a ser reinstaurada? Uma cientista que havia
obtido a fórmula do elixir da longevidade? Mas a única hipótese tida por mim
como plausível era o fato de que aquele bando de procuradores não mais
conseguia viver sem ela e, por isso, ela poderia valer ao pirata-mór um
suculento butim a título de resgate. Um ano havia se passado desde o dia em que
eu me vi na confusão das malas. Aos poucos fui me fartando de cocos e
caranguejos e me enturmando com os nativos que lá encontrei. E, passado um ano, era hora de procurar saber
onde seria realizado o décimo sétimo congresso. Nem precisei tentar saber, pois
três grandes ônibus repentinamente chegaram àquela praia e no da frente, nas
duas poltronas da frente, a procuradora magrela, de cabelos curtos e pretos,
dando vozes de comando e a guia dizendo “aqui viveu o Rei Platão”, “logo ali o
Jogador Sócrates”, “Acolá, Arquimedes, Anaximandro, Pitágoras e mais adiante”,
apontando para mim, “aquele pelado, enfiado numa tina, descendente de um
filósofo grego de nome Diógenes, o Cão Celestial!” Na hora saquei que na Grécia
estava começando o XVII CONPPREV!
O cão ladra e a caravana passa
Como fiquei sofrendo e batendo pernas pelo mundo, entre a
realização do XVI e a do XVII um ano depois, não pude participar da organização
desse que é o mais importante e inusitado conclave que ocorre no Planeta, quiçá
no Universo. Presumo, todavia, que eu teria sofrido infinitamente mais do que sofri
se eu tivesse retornado a Cu de Gato e tivesse me metido na sua Comissão
Organizadora. Rugas, pelancas, hematomas, braços em tipóia, falta de dentes
eram visivelmente percebidos em toda a hierarquia da entidade de classe,
organizadora do conclave, num claro sintoma de eles passaram o ano na mais
completa guerra. Como não vi participantes das versões anteriores, conclui que
alguns tombaram na luta. Concluí também que refregas, embates e bafafás
produzem efeitos diferentes nas pessoas que deles participam. A maioria,
obviamente, feito mutilados de guerra, traz em seus corpos e mentes os
deletérios efeitos da vida bélica. Alguns, no entanto, não sofrem nem perecem,
mas, ao contrário, parecem que se rejuvenescem quanto mais guerreiam. Mas,
enfim, não obstante toda sorte de desentendimentos que precede o evento, ele
sempre foi um sucesso e não será desta vez diferente. É óbvio que o mundo mudou
enormemente entre o XVI e o XVII, pois Bin Laden morreu no término do anterior,
um Papa foi precocemente canonizado, um terremoto sacudiu Roma e a Espanha e
mais um montão de acontecimentos que não teriam ocorrido não fosse a realização
de nosso Congresso. Mas apesar de toda essa força transformadora, acho que o
tempo passou para mim e não faz sentido que eu saia de dentro desta tina, tome
um banho, raspe a minha barba, me meta num terno e acompanhe, de ilha em ilha,
a minha velha turma. Como sumi deles nos últimos doze meses, o lógico seria
supor que eles me consideram morto. Mas não vejo na programação do evento nada
que lembre a minha existência, eu que tive o privilégio de presidir vários
congressos. Acho até que a maioria se sente aliviada, pois em meu tempo longas
e enfadonhas eram as palestras, quando congresso é a oportunidade que o ser
humano tem de fazer o que gosta. Quando mais jovens, todos gostavam de dançar,
cantar, namorar... Mas a ciência demonstra que o ser humano, mesmo o mais
incréu, o mais ateu, enfia de cabeça no misticismo assim que o peso da idade
abate sobre ele. Nisso, portanto, reside a explicação de os congressos terem
paulatinamente modificado os seus conteúdos programáticos, enfatizando romarias,
procissões, peregrinações e atividades similares e/ou correlatas. Mas como esse
tipo de modificação comportamental resulta de algo que não brota do livre
arbítrio, posto que um reflexo incondicionado, tal modalidade de misticismo
difere da fé professada pelos místicos de verdade. Como é forçada, não pela
vontade de crer, mas como sintoma inafastável do peso da idade, eles praguejam,
xingam e resmungam ao terem que visitar os lugares sagrados. De igual modo,
eles detestam guias que ficam narrando coisas do passado, mesmo porque a
maioria foi testemunha ocular dos fatos narrados e ninguém gosta dos que querem
ensinar padre-nosso ao vigário. Não tiro a razão deles, até porque muitos foram
pareceristas em eventos épicos narrados pelos guias e alguns participaram de
muitas cerimônias reais do passado. É óbvio que alguns exageram, inclusive um
distinto colega que jura que trabalhou no processo que antecipou a maioridade
de um monarca de dupla numeração: Pedro I e também IV! Também me incomoda o
porquê de eles ultimamente, na escolha do local de seus congressos, optarem por
antiguidades e ruínas, se antes praias paradisíacas, estâncias termais,
transatlânticos enfim eram sede dos conclaves! É óbvio que eu, depois de entrar
pelado nesta tina e de estar em pleno solo grego, dei de filosofar e buscar um
sentido lógico para tudo que vejo. Mas como o hábito (ou, no meu caso, a falta
dele) não faz um monge, essas minhas conclusões carecem de bases científicas e
temo até que possam ser entendidas como inveja ou ressentimento por não
participar de mais um congresso, eu que sempre fui um conpreviano praticante e
juramentado. E assim, enquanto eu ladrava, a caravana congressual passava!
Os Filósofos
Vi o último congressista tomar o ônibus, carregado de sacolas,
e levar a tradicional vaia. Logo o último ônibus arrancou. Nem bem, de dentro
da minha tina, tentei puxar um cochilo, ouvi choros e gritaria. Simplesmente um
grupo chegou atrasado, quando o último ônibus já sumia na curva da estradinha
de areia. Eu conhecia todos aqueles rostos e nutria por eles o maior carinho.
Se ao invés da tina, eu morasse, por exemplo, num palácio, ou mesmo numa
habitação mais decente, com certeza eu teria os convidado a entrar e ali eu
certamente arrefeceria, com bebidas, comidas, boa música, a perda que sofreram.
De igual modo, de nada adiantaria eu me apresentar a eles como velho colega, se
nada em mim lembrava aquele cara metido em ternos bem cortados, camisas
engomadas, lustrosos sapatos, bótons dourados, o verdadeiro rei da cocada
preta, enfim! Eles, me vendo nu e
esquálido, com aquela horrível barba desgrenhada e saindo de uma velha tina
jogada num canto de praia, jamais imaginariam que eu era aquela pessoa tão glamorosa
que eles conheceram. Mais irreconhecível ainda eu seria, se além do meu aspecto
físico, eles percebessem o quanto me mudei mentalmente, entrando no estéril e
inútil campo da filosofia, próprio dos párias e desocupados, quando eu deveria
dedicar o meu engenho e arte àquilo que eles dedicavam e que também dediquei
antes de minha débâcle. Na tina, por conseguinte, quietinho permaneci, não com
o sentimento de culpa de não lhes ter propiciado o dever da hospitalidade,
justo numa hora tão adversa como aquela que eles passavam. A noite caía e eles
se esforçavam em arranjarem uma carona, mas nada de aparecer uma reles carroça,
quem dirá um táxi. Eu torcia para que eles conseguissem um transporte, não por
ver em suas presenças um fator de incômodo para mim. Eles, por seu turno,
sequer percebiam a minha presença ali e se percebiam dela não se introjetavam,
sabido cientificamente que o ser humano tende a não enxergar os que se parecem
fisionomicamente inferiores, como é o caso dos faxineiros, ascensoristas e
afins. Mas eu também torcia para que eles fossem porque assim que caía a noite
eu recebia as mais interessantes visitas e elas não gostavam de estranhos por
perto. Eram amigos que consegui em solo grego, destes que jamais pedem coisas,
nos invejam ou falam mal da gente. Amigos que, vendo o outro na mais absurda provação,
jamais dão as costas ou temem serem importunados com pedidos de ajuda ou com
acenos de reciprocidade em relação a um benefício anteriormente proporcionado.
Amigos capazes de se sentirem na minha velha tina como que se estivessem no
mais opulento dos castelos: OS FILÓSOFOS!
Um bom conselho
De Cu de Gato somente a saudade de todas aquelas coisas que
eu surrupiava e, com elas, exercitava o meu hobby de presentear as pessoas.
Apesar de muitos atribuírem aspectos utilitaristas àquela minha prodigalidade
crônica, confesso que o fazia pelo simples prazer de me agradar, agradando ao
mesmo tempo as pessoas. Eu, sinceramente, não vindicava reciprocidade, tanto é
verdade que muitos dos meus beneficiários se voltavam contra mim. Eu sabia de
cor uma frase que dizia que “o dia do benefício é a véspera da ingratidão”, mas
mesmo compreendendo em sua plenitude o que ela dizia, ainda assim eu continuava
distribuindo mimos, presentes e agrados a todos que eu encontrava. Às vezes,
por engano, eu surrupiava algo que eu próprio dei de presente. Nesse caso, diz
a lei vigente no ordenamento de Cu de Gato, não se constituía roubo ou furto,
sobretudo na hipótese de o donatário não ter exercitado o dever da gratidão em
relação a mim. A lei de lá é clara: verificada a ingratidão, a doação é
automaticamente desfeita e o bem anteriormente dado volta ao patrimônio do
doador. Mas eles nunca voltavam e, por incrível que pareça, os beneficiários me
processavam por furto ou roubo, o que invariavelmente não dava em nada, na medida
em que eu, no instante que o surrupiava, passava o objeto para frente. Aqui,
como nada possuo, nada posso ofertar. Como nunca me vali de outro artifício
para roubar, senão a língua, o fato de não falar a daqui me impede de exercitar
aquele hobby tão caro a mim, quando eu vivia em Cu de Gato. Assim, jogado na
mais absoluta ociosidade e sem perspectivas de outra ocupação, não me resta
outra coisa a fazer senão filosofices. E como a arte de filosofar tem por
ingredientes fatos passados, os quais são submetidos a premissas, postulados e
leis, é que eu acabo por remexer o meu velho baú de memórias. Só por isso as
remexo, nunca por ressentimentos! Aliás, no íntimo estou gostando mais de mim
como ora sou, do que como eu era anteriormente. Aquele meu jeito de ser antanho
era complicado, dificultoso e oneroso, na medida em que eu perdia muito tempo
me lavando, afeitando barba, cortando cabelo, aparando unhas, trocando de finas
roupas e tantas outras obrigações que hoje não tenho. E como a vida que levo
hoje se deve ao comportamento dos cugatenses em relação a mim, seria uma ingratidão
eu alimentar ressentimentos em relação a eles. Se os alimentasse, eu estaria
contrariando a própria legislação cugatense, incidindo em algo que poderia
acarretar o desfazimento da boa vida que me legaram. Nesse caso, eu teria que
sair dessa tina, tomar banho, raspar a minha longa barba, cortar as minhas
unhas, me meter num terno, dar um belo laço na gravata, providenciar uma 007,
celular, tablet, bóton, cartão de visita e voltar para o meu antigo batente. Exceto
os mórmons que bem souberam escolher um Deus que lhes garantem a transladação
de todos os seus bens quando partem para outra vida, não conheço um possuidor
de coisas que não fique de cabelo em pé em saber que, ao morrer, não terá como
levá-las junto. Deste mal eu, pelo menos, não sofro, mesmo porque nem minha é
esta tina, nem meus são estes pensamentos, de modo que prefiro não alimentar
ressentimentos e conservar junto de mim o nada que me legaram. Como nada é
nada, ao contrário deles, feito os mórmons eu o levarei junto. Com efeito,
Cristo, apesar de sua potência, não castigou Judas, pois sem a traição de Judas
ele jamais teria chegado a Cristo! De igual modo, sem a expulsão a mim
infligida pelos cugatenses, eu jamais chegaria à confortável situação de não
ter coisas me incomodando, pedindo que eu as conserve, que eu as conserte, que
delas eu obtenha lucros e que para elas eu busque uma destinação que não seja a
sua dissipação pelos herdeiros, sobretudo os genros ou o governo! Mas voltando
ao misto de congresso-romaria-peregrinação, sem querer me meter em sua
concepção, penso ter chegado a hora de uma séria discussão sobre isso: um
painel ou um workshoping com a presença de economistas, estrategistas,
especialistas em finanças e cooperativismo, advinhos e malabaristas com vistas
a dotar a classe de conhecimentos de como gerir bens nos estertores da morte.
Mas que não me chamem para uma palestra, pois ela será curta e eu apedrejado,
pois o tema que eu escolheria seria: Torrem tudo, enquanto ainda há tempo!
A Recaída
Assim que acordei e pus a minha cara para fora da tina,
deparei com mais aquela horda de turistas que aqui chega diariamente. Mas isso
seria um acontecimento banal e corriqueiro não fosse a visão de um deles
puxando uma mala idêntica àquelas duas que passaram por minhas mãos em época
não muito recente. Como ambas foram por mim esvaziadas, eu, a principio, nada
deveria regozijar (pelo monte de dinheiro) ou temer (pelos inconvenientes de
muito dinheiro ter)! Embora, por segundos, essas sensações antípodas acabaram
por passar por mim, logo fui restituído à minha habitual calma e continuei na
minha azáfama diária de só pensar. Mas como a noite anterior foi fraca no
quesito das visitas que recebo em minha tina, pobres eram os meus pensamentos
naquele dia, o que abriu brecha para que, volta e meia, eu pensasse naquele
sujeito e em sua mala. Exceto, porém, aquela visão no início da manhã, o dia
transcorreu sem que eu os visse, o que me levou a uma série de conjecturas,
desde as óbvias como “ele deu entrada num hotel” às mais extremas do tipo “ele
enterrou a mala na areia”! Como os vi, mala e sujeito, a uma distância
considerável, e como não disponho de binóculos, por exemplo, não pude me
acercar, sobretudo em relação ao macróbio, se ele era aquele coroa do qual subtraí a loura e a mala e se esta
última era realmente uma daquelas, sobretudo a mais rica. Como a minha visão
mais se deteve nela do que nele, elementos de convicção se reforçaram em mim de
que com muita certeza ela era uma ou outra, daquelas que se alternaram em
minhas mãos em época não muito distante. E aí eu me pus a imaginar sobre o seu
conteúdo. Observei que o seu carregador não transparecia dificuldades em
carregá-la. Por outro lado, notei que os seus sapatos afundavam na areia numa
proporção bem superior à dos demais turistas, o que poderia evidenciar o seu
sobrepeso. Mas ele, carregador, parecia mais gordo do que os demais! Gordo, ou
suas roupas eram folgadas e disfarçavam a sua magreza? Mas se fosse magro,
incongruente seria supor a sua tranquila deambulação com aquele peso todo que
eu supunha estar em seu interior. Aí eu me pilhei, naquelas divagações,
privilegiando a suposta riqueza contida em seu interior, não a possibilidade de
ela estar vazia ou quando muito recheada de molambos, feijão e farinha, como
estava a primeira que carreguei em data não muito recente. Aliás, me pilhei
divagando sobre a hipótese de ela ser uma daquelas, quando seria razoável, em
se tratando de mim, imaginá-la apenas como mais uma dos milhares que saíram,
idênticas, da linha de montagem de seu fabricante. Se a noite anterior tivesse
sido pródiga em filósofos visitadores de minha tina, com certeza eu perfilharia
esta última hipótese ou talvez nem tivesse açulado a minha curiosidade em
relação à mala que vi na mão do turista. Mas, por mais que me esforçasse em
sentido contrário, lucubrações sobre o raio da mala fervilhavam em minha
cabeça. Cheguei a agachar-me dentro da tina, cabeceando o seu fundo, quando um
pensamento extremo me transportou sobre mares e eu cheguei a Cu de Gato, com
ela a tiracolo, onde distribuí todo o dinheiro. Em segundos, mudei de idéia e
comprei tudo que havia de melhor, para inveja dos cugatenses. Mais algumas
cabeçadas no fundo da velha tina, imaginei-a fornida somente de feijões e com
eles sonhei saciar a fome do mundo. Finalmente, com a testa tomada por
hematomas, tomei-a por literalmente vazia e sosseguei. A noite caiu e, como os
turistas resolveram ficar, não recebi as minhas visitas. Nervoso, me pus a
andar pela praia, chutando latas e restos de comida, quando o meu pé direito
esbarrou em algo que logo imaginei fosse uma mala ali enterrada. Apertei um
pouco mais e senti a aspereza de uma lona. Tateei-a e o meu pé, ao sentir o
metal de seu zíper, mandou para o meu cérebro a conclusão que era de fato uma
mala. Fiz vênia de desenterrá-la, mas fui dissuadido pela presença de todos
aqueles vultos andando pela praia. Pensei passar a noite perto dela, mas temi
que eu pudesse perder a minha tina, abandonada cerca de um quilômetro. Ponderei
que, com o conteúdo da mala, eu poderia comprar não outra tina, mas todas as
tinas do mundo, mas logo me redargüi sobre a hipótese de ela estar vazia ou sem
dinheiro. E aí, pelo sim pelo não, não quis trocar o certo pelo duvidoso e saí
imediatamente dali, indo em direção à velha tina. Mas ao passar por um trecho
ermo da praia, topei com um casal ali a transar. Embora fraca a luz da lua, um
corpo escultural ofuscou os meus olhos e a sua silhueta coincidiu exatamente
com a da loura que ainda estava gravada em minha retina. Aproximei-me um pouco mais e tudo nela, do
montinho negro de Vênus contrastando com aquela brancura de pele, ao dourado de
seus cabelos refletindo os raios da lua, me acerquei de que ambas, mala e
loura, estavam novamente próximas a mim, quem sabe à procura de mim ou
propensas a que eu as encontrasse. Tomei aquilo como algo do destino e
filosofei sobre se deve ou não se curvar ante os seus desígnios e, em se
curvando, até que ponto isso significa contrariar os nossos princípios. Tomei o
partido dos princípios e reprincipiei minha caminhada rumo à tina, quando vi um
turista se afogando, enquanto os de sua turma sequer esboçavam qualquer gesto
em salvá-lo. Notei que pelos chapéus e língua eram chineses e me lembrei que
vigora em algum lugar da China uma lei que proíbe alguém salvar os que estão se
afogando, pois isso interfere no regular desiderato de seus destinos. Mudei
então de idéia, abracei o partido do destino como força superior à dos
princípios e voltei ao lugar em que momentos antes topei com aquele animado
casal. Mas em lá chegando não os vi mais. Dirigi-me, então ao lugar em que eu
supunha estar enterrada a mala, mas como não o assinalei, acabei por varar a
madrugada revolvendo montes e mais montes de areia e nada encontrando.
Encontro
Dia quase raiando, ao longe vi a minha tina. Exausto de tanto
cavar areia e nada encontrar, não via a hora de lá chegar e descansar o meu
pobre esqueleto. Mas lenta era a minha jornada, fruto do cansaço e do fofo da
areia sob os meus pés. Enquanto caminhava, eu me penitenciava pela quase
recaída, mas ao mesmo tempo me sentia feliz ao ver a minha tina cada vez mais
perto. Via-me, ao final do dia, em animado papo com as minhas visitas, bebendo
na boa fonte as mais acertadas conclusões, sobretudo acerca da primazia, ou
não, dos princípios sobre o destino e me prometendo, fosse qual fosse a
conclusão, me aferrar inarredavelmente a ela, não obstante quaisquer apelos que
cruzassem o meu caminho, sobretudo os de natureza libidinosa, mercê de minha
impotência. Aos poucos, o vento frio da manhã, vindo do mar em direção ao
continente, foi arejando a minha cabeça, espanando toda aquela poeira de maus
pensamentos e inteiramente limpo cheguei perto da minha querida tina. Mas
quando levantei a perna direita, tentando alçá-la e entrar em seu continente,
um susto: - Suma daqui... desapareça!
Ela simplesmente havia sido invadida e de seu interior jorravam frases
inamistosas, pontuada por gestos beligerantes, socos dados para o alto, sem que
fosse possível divisar a fisionomia de quem os desferiam. Ponderei que a tina
era minha, mas o invasor pediu que eu provasse, exigindo-me até a apresentação
de coisas como escritura, pagamentos de taxas e correspondência a mim destinada
naquele endereço. Pensei partir para as vias de fato, mas quando tentei por a
cara em seu interior, um punhado de areia saído lá de dentro turvou a minha
visão. Por minutos fiquei com os meus olhos ardendo feito brasa e consegui
lavá-los com a água do mar, enquanto uma voz cada vez mais distante gritava: fique com a mala e com a loira! Aí,
ainda meio cego, supus que o invasor havia fugido e me deixado, além da mala e
da loira que eu não mais desejava possuir, a minha inseparável tina. Mas qual nada!
Assim que a visão recobrei concluí que o sujeito era realmente o coroa e que
ele havia fugido com a minha velha tina. Corri o quanto pude, mas ambos, velho
e tina, sumiram naquela imensidão. E eu que até pensava imune a perdas; e eu
que me imaginava inteiramente desapegado de coisas materiais, ali a lamentar o
roubo de uma tina, que nem minha verdadeiramente era, sem contar o fato de que
eu não sou descendente do louco Cão Celestial, não sendo seu herdeiro,
portanto! Mas eu estava ali nu, na mais acentuada acepção do termo. E, naquela
circunstância, encontrar aquela mala não mais era uma questão de destino ou de
principio, mas a escancarada acepção do estado de necessidade, com a sua força
de afastar de meu gesto pruridos de culpa, por exemplo. Resoluto, parti rumo à
maldita mala, torcendo que nela, ao invés de dinheiro, eu encontrasse pelo
menos roupa. Cego de raiva e dos efeitos da areia irritando os meus olhos saí
cavando a esmo até que esbarrei num corpo deitado na praia. Era a loira e ele
se desmanchava a me ver! Mas eu nada
queria com ela e dela, feito um brutamontes, me desvencilhei, seguindo no meu
afã de a mala encontrar. Fui até o fim da praia, esquadrinhando-a palmo a palmo
e nada de encontrar o raio de mala. Cansado e sem o conforto da tina, ali mesmo
deitei e me pus a sonhar, sonhar sobretudo encontrando a mala que eu, sem
sombra de dúvida, vi ali enterrada. Mas aos poucos meu sonho foi se embrenhando
por caminhos de meu inconsciente há muito não navegados. E, de repente, ele
chegou à morada dos instintos sexuais e aquela loira, horas antes por mim espancada
e enxotava, se enleava em mim e me acariciava, enquanto uma inusitada ereção
pendia de meu corpo feito as palmeiras em volta. E aí eu me dei conta de que
nem tudo estava perdido, ou melhor, o que eu julgava perdido – a minha velha
ereção – estava ali de volta, rija e pulsante como dantes, enquanto a loira
certamente perambulava por perto. Desisti, então, de procurar a malsinada mala,
dando-me por satisfeito em achar aquela apetitosa loira, para transformar em
realidade o sonho que eu acabara de sonhar. Voltei, então, ao lugar onde ela se
deitara e ao longe, espetado num monte de areia revolvida, um bilhete: - A
mala estava enterrada aqui! De fato, a silhueta dela estava estampada
no fundo do buraco, sendo possível ler a sua marca invertida e em baixo relevo.
Mas como as esvaziei, torrando todo o dinheiro de uma e, em seguida, comendo
todos os feijões da outra, por que o coroa e a loira trouxeram uma ou outra? Se
a enterraram, isso significa que nada havia em seu conteúdo ou se havia era
insignificante? Ou a enterraram justamente por que nela jazia um tesouro? Essas
e mil indagações fervilhavam em minha cabeça, ponteadas pela tristeza do sumiço
da loira e principalmente de minha tina. Despossuído de tudo, inclusive da
esperança de encontrá-las, mala, loira ou a minha velha tina, pela primeira vez
brotou o desejo de morrer ou de voltar para Cu de Gato. Mas como?
A Volta
Aos poucos Cu de Gato não me saía da lembrança. Desde o
esbulho possessório da tina de que fui vítima, os filósofos não mais me
visitavam e, longe de seus ensinamentos, os meus valores, tidos por mim como
inabaláveis como os penhascos no centro da ilha, pendiam por se corromperem. Nu
que me achava e sem o abrigo da tina, pela primeira vez na vida me apropriei de
algo, não para exercitar a antiga prodigalidade, mas para o meu próprio uso: um
velho calção de banho, enquanto o seu proprietário se banhava distraidamente num
ponto distante da linha da praia. Como roubar e coçar é só começar, ao cair da
tarde daquele mesmo dia eu já estava metido num bom terno, sentado à mesa de um
fino restaurante, donde saí ao volante de um possante esportivo, ali
estacionado com as chaves na ignição. Ao sair daquele repasto, repondo em minha
carteira o troco recebido, dei um encontrão num mendigo que a mão me estendia à
porta e, naquele instante, me dei por curado do vício de tudo dar. Dancei a
noite toda e amanheci naquela suíte presidencial, ao lado de três estupendas
garotas, uma mais gostosa do que a outra. Como há muito tempo não fazia, assim
que abri os olhos rendi todas as graças a Deus, rezei e me persignei pelo fato
de Ele ter me livrado da prodigalidade, do pavor de roubar por roubar, da
impotência, daquela ingrata loira, do pobre conteúdo da mala de dinheiro e,
sobretudo, daquela horrorosa tina. Àquela altura, para que eu voltasse de
cabeça erguida para Cu de Gato, só me faltava a posse de um jatinho ou de um
estupendo iate. Com certeza, graças à súbita mudança de comportamento, que Deus
ou o destino me bafejou, temor de não me adaptar ali eu não tinha, mesmo porque
me tornei um cugatense da gema. Mas preferi adiar a minha volta, tal o meu
êxito empresarial no Velho Continente. De mais a mais, andando por aqueles
requintados endereços era como em Cu de Gato eu estivesse, tal o número de
turistas endinheirados, vindos de lá. A única coisa que me fazia passar por
local, não por cugatense como eles, era o temor de eles me pedirem as minhas
coisas e eu recair no vício de tudo dar. Pelo contrário, eu àquela altura
tirava deles tudo o que eu podia tirar e sem que eles percebessem. Como obtive
a concessão para explorar os principais museus, mosteiros, castelos e
monumentos, graças ao jeitinho cugatense, cada vez que eles ali entravam mais
engordavam o meu estupendo patrimônio, pois se limitavam a entrarem por uma
porta e saírem por outra sem ao menos admirar uma mera obra de arte! Pagavam
fortunas pela comida de meus restaurantes, mas raramente mexiam nos pratos,
atrasados que são como consumidores de farinha e feijão. Finalmente eu era um
homem realizado e feliz. Embora voando em meus próprios jatos e navegando nos
meus iates, eu pouco cruzava com viajantes. Hospedando-me em minhas próprias
mansões espalhadas por ilhas e continentes, eu raramente os via, pois, apesar
de minha felicidade, ainda insistia em jazer em mim o trauma de ver malas.
Sobretudo o medo de, ao ver uma parecida com aquelas de triste memória,
rebrotar em mim toda aquela sorte de infortúnios e atropelos. É óbvio que tal
possibilidade se arrefeceu quando comprei a fábrica e determinei o fim da
confecção daquele malsinado modelo, substituindo por um bem diferente, cujos
donos poderiam trocá-lo pelo novo e ainda levarem cintos e chapéus como
brindes. De qualquer sorte, aquele velho modelo, se é que ainda resta algum
voando ou navegando por aí, ainda me causa traumas e arrepios, mas me conforta
a força do Poderoso que não falhou em empreitadas tão mais difíceis e não falhará
na ingente tarefa de colocar bem longe de mim alguma mala remanescente.
Suposições
Acordei sem acreditar no que a minha governanta me dizia.
Enquanto despia o meu pijama de seda, ela tentava me convencer de que todos
aqueles jornais traziam uma manchete a meu respeito. O barulho da água da ducha
abafava toda aquela lengalenga, mas ela, do outro lado do vidro do box,
acenava-me com os exemplares dos jornais e eu permanecia impávido, como que
aquilo não fosse comigo. E assim me permaneci ao barbear, ao escolher e vestir
as minhas roupas, ao afagar a minha matilha ao pé da porta do quarto e,
finalmente, ao tomar o café-da-manhã e rumar para a sede de meu conglomerado, a
bordo de um dos meus helicópteros. Nele, pelos fones de comunicação, o piloto
insistia em me dar aquelas mesmas notícias, mas o barulho do rotor me impedia
de ouvir. Já no heliporto, o meu diretor jurídico, nem bem apeei, quase que foi
degolado pela hélice traseira, ao dizer que eu não deveria me submeter àquilo.
Mas, por vontade própria, eu, mesmo não sabendo do que se tratava, disse a ele
que não iria me submeter. Como aprendi que não se deve dar ouvidos a
subordinados, ali mesmo dispensei o piloto e dali decolei rumo a uma de muitas
das minhas ilhas, justo a deserta, na certeza de que ninguém me daria qualquer
espécie de notícia. Pousei e, depois de muito tempo, pude mergulhar na solidão.
Fiz do helicóptero a minha pousada e a pequenez de sua cabine não significava
desconforto para quem por muito tempo viveu dentro de uma tina. A solidão tem
efetivamente as suas vantagens, mas desperta a mania de pensar, conjecturar e
imaginar. E eu, mesmo deliberadamente não tendo querido ouvir aquelas notícias,
me pus a tecer considerações sobre o seu teor. Por muitos dias não me saía da
cabeça que elas tinham a ver com a loira. Como elas pareciam dizer respeito a
se submeter a algo, pensei num exame de DNA, mas eu somente transei com ela em
sonho e as transas reais se deram ao tempo em que eu era impotente e infértil.
Pensei que “se submeter” tinha algo a ver com a forma com que amealhei
fortunas, mas tudo fiz mediante parecer de advogados, sem contar a minha
experiência como um. Tais suposições eram alternadas pela de que acharam a
velha tina e eu teria que me submeter à comprovação de que fui o seu dono. E,
como não poderia deixar de ser, a mala também não me saía da cabeça e eles
queriam que eu comprovasse que de fato ela era minha. E assim os dias foram
passando e o meu estoque de conjecturas aumentando. Em um canto da praia resolvi
então traçar na areia várias colunas, cada uma encimada por uma palavra capaz
de designar os tipos de suposição que passaram por minha cabeça. Dividi-as em
subgrupos do tipo “Cu de Gato”, subdividido em família, profissão, amigos,
trambiques, prodigalidade e outras, e do tipo “Fuga”, “Congresso”, “Mala”,
“Guia Turística”, “Coroa”, “Loira”, “Tina”, “Fase Empresarial” e “Outras a
classificar”. Vários gravetos gastei rabiscando minhas suposições naquela
extensa fila de colunas, cujos escritos eu vigiava constantemente, nomeadamente
contra gaivotas e outras aves marinhas que insistiam em pisoteá-los. Certo é
que aquela faixa de areia se transformou numa gigantesca folha de papel. Mas
quando eu já me dava por satisfeito e partia para a tabulação de todos aqueles
dados imprescindíveis à minha conclusão e tomada de decisão, um pavoroso
tsunami lambeu toda a ilha, levando-me, eu e o helicóptero, de roldão. Quando
dei por mim, eu estava em mar alto, agarrado num tronco de palmeira e sem saber
que rumo tomar, pois somente água eu via para qualquer lado que eu virasse.
Como não era a minha primeira vez como náufrago, me arrepiei ao pensar que a
sorte, feito os raios, não costuma cair no mesmo lugar e aí me pus a raciocinar
feito um possuidor de coisas nos estertores da morte. E aquela ilha, apesar de
varrida pelo tsunami? E todas as outras? E as mansões? E os carrões, iates,
aviões e helicópteros? E os conglomerados, com suas indústrias, financeiras e
imobiliárias? E a minha recheada carteira de aplicações? E eu ali, em pleno
alto mar, agarrado num tronco de palmeira! Enquanto isso o tronco, levando-me
junto, parecia rumar em direção ao nada. As forças que me restavam já não eram
suficientes para a mais tênue remada, quando, ao longe, divisei os contornos de
uma pequena ilha. Animei-me, mas à proporção que ela se aproximava, o refluxo
da onda nos impelia em sentido contrário. Entreguei, então, os pontos, fechei
os olhos e me preparei para a viagem final...
Náufrago de novo
Abri os olhos e que surpresa: uma suntuosa suíte! Numa grande
mesa, todos os tipos de comidas e bebidas, mas ninguém por perto. Tentei me
levantar, mas algo preso na junção de meu braço com antebraço me impediu de
levantar. Olhei e notei que eu estava atrelado a um descomunal garrafão de
soro, cujo conteúdo já se achava próximo a se esgotar. Removi então o
torniquete e retirei a agulha espetada em meu braço. Num arranco, cheguei à
janela e só vi uma luxuriante vegetação em torno da mansarda. Abri a porta da
grande suíte e comecei a gritar por alguém, mas ninguém respondia, muito menos
vinha ao meu encontro. Passei por todas as salas, todos os corredores e todos
os quartos, todos suntuosos e bem arrumados, mas nada de encontrar reles
vivalma. Cheguei a um escritório e meu coração disparou ao ver ali telefones e
terminais de computadores. Os telefones mudos estavam, mas para sorte minha um
dos terminais respondeu prontamente ao aperto de suas teclas. Finalmente eu
poderia mandar uma mensagem para a minha empresa e logo eles me retirariam
daquele tugúrio de fim de mundo. Mas, de sua tela, o pedido para que eu
digitasse uma senha que eu sequer possuía. Levantei-me e me pus a andar em
torno da ilha, tentando achar algum iate ou uma simples canoa capaz de me
transportar para além daquela ilha. Nada achei que se prestasse à arte de
marear, senão o conhecido tronco de palmeira que me trouxe. Por um instante
cheguei a imaginar que eu, morto que me supus, não mais estava no Planeta Terra
e que, graças ao Deus Mórmon, eu havia sido translado com a minha ilha
diretamente para o Céu. Mas, ponderei comigo mesmo que aquilo era uma
estultice, pois a minha vida pregressa jamais me conduziria a alguma plaga
celestial, não obstante valores morais cultivados pelos mórmons, inteiramente
incongruentes com o código deontológico da maioria das religiões. Voltei ao
escritório e me pus a vasculhar mesas e gavetas à cata de alguma pista sobre
aquele local, sobre quem me socorreu e, sobretudo, à procura da maldita senha
que o computador me pedia para digitar. Baldada toda a procura, me pus a
combinar letras do alfabeto, ora números, ora ambos, no afã de acertar a senha
solicitada, mas nada! Exceto de viventes e de meios de comunicação externa, a
ilha estava munida de tudo que um ser humano necessita. Curiosamente, todos os
livros das estantes, todos os filmes, bebidas, charutos e afins eram coisas do
meu gosto, num sintoma de que quem me socorreu e me deixou ali era pessoa
conhecedora do meu jeito de ser. Menos mal, pois aquela era a primeira vez que
eu estava segregado, mas cercado de todo o conforto. Até substâncias
tranqüilizantes, legais e proibidas, capazes de arrefecer o meu estresse eu
achava por todos os cantos. Numa pequena torre da mansarda, binóculos, lunetas
e telescópios para que eu me distraísse observando os astros. Obviamente, não
morria em mim a esperança de que alguém viria ao meu encontro, pois toda aquela
receptividade denotava que o meu ou a minha hostess ou anfitriã era pessoa que
nutria por mim todo o cuidado e apreço. No terceiro dia da espera, um ronco de
avião ou helicóptero e a certeza de que vinha ao meu encontro. Mas nada, ele
passou ao longe, enquanto eu tentava encontrar ali algo capaz de gerar faísca
ou fogo, de forma a me permitir mandar sinais de fumaça. Só então me dei conta
da falta deste item. Mas me lembrei da eletricidade, inclusive no terminal de
computador e me aliviei ao constatar a possibilidade de transformá-la em fogo
assim que me aprouvesse. Afora a solidão, a que eu já me acostumara desde
sempre, aos poucos fui me adaptando e até mesmo gostando de minha estada
naquela ilha, longe dos aborrecimentos da vida empresarial. Embora imprestável
para a comunicação, o computador me permitiu que eu nele registrasse estas
memórias, matando assim o meu tempo. Além de escrever, a luxuriante vegetação
da ilha permitiu extravasar em mim um hobby há muito perdido, o da jardinagem.
Além disso, depois de gororobas insossas, eu já podia me considerar um bom
chef, tantos os livros e dvd´s com as mais variadas receitas, cujos
ingredientes eram facilmente encontráveis na bem fornida despensa da mansarda,
dotada das mais requintadas iguarias, inclusive farinha e feijão. Do mesmo
modo, tamanha a quantidade de bons filmes que assisti, eu poderia simplesmente
dispensar os críticos de cinema dos meus jornais e revistas. Bonecas infláveis
e filmes x-rated aliviavam os meus baixos instintos, de forma que cheguei ao
ponto de desejar jamais ser retirado dali. Certa noite, todavia, ao vasculhar
os céus em busca de algum novo astro, quiçá de um ET, abaixei o tubo da luneta
bem próximo à linha do horizonte e deparei, ao longe, com um grande navio,
cujas janelinhas evidenciavam que não era um cargueiro, mas possivelmente
aqueles cruzeiros ou transatlânticos. Num primeiro momento, por conta da bruma
e da distância, eu não tinha como divisar sua bandeira ou algo que estivesse
escrito em seu casco. Mas a profusão de luzes acesas em seu deck superior e
fogos de artifício soltados a cada instante evidenciavam festa a bordo. Temi
que ele passasse ao largo, mas aos poucos ele foi crescendo nas lentes de minha
luneta. Foi aí então que me lembrei da necessidade de mandar sinais de fumaça e
apressei em preparar um curto-circuito capaz de incandescer uma grande tocha
que havia preparado fazia muito tempo. Removi, então, o tampo de um dos
interruptores, desparafusei o par de fios, mas quando os coloquei em contato
uma pequena explosão cortou toda a energia da ilha. Voltei correndo à torre de
observação, ajustei a luneta rumo ao navio e ele, àquela altura bem mais perto,
se mostrou para mim com todo o seu garbo e grandeza. Deslizei o foco de minha
luneta sobre o seu casco, vi o seu nome e bandeira e, tremulando entre as suas
duas enormes chaminés, uma grande faixa: SALVE O XVIII CONGRESSO NACIONAL DOS
PROC... Não acreditei e, no ato, lívido
e suando frio, desviei repentinamente o foco de minha luneta!
Gran Finale
Com tantos lugares no mundo para se navegar, me perguntei:
que raio de coisa fez aquele navio parar ali. E com tanta gente para me achar,
por que razão eu ser encontrado justamente por aqueles folgados congressistas?
Eu sequer havia dado conta de que dois anos se passaram desde o dia em que, num
congresso, fui vítima da troca de malas. De igual modo me custava crer que toda
aquela gente ainda estava viva, sobretudo uma entidade de classe que eles
próprios vaticinavam constantemente a sua morte! Mas eram eles mesmos, daquela
feita realizando o seu anual evento em mais um transatlântico. O alarido era
tamanho e tamanha a algazarra a bordo que o navio se jogava mais do que o
habitual, levando-me a temer até por mais um tsunami a varrer aquela ilhota em
que eu estava tão confortavelmente instalado.
Mas lembrando-me de que velhos eram os meus antigos colegas, supus que
toda aquela vitalidade a bordo ou era por conta do Viagra ou a entidade
finalmente havia conseguido concretizar o sonho de filiar os novos
procuradores. Vendo, porém, aquela balbúrdia toda, dei graças a Deus por não
ter conseguido fazer fogo e fumaça, de modo a chamar a atenção de seus
tripulantes e passageiros. Em dúvida quanto à sua verdadeira carga humana,
centrei novamente o foco da luneta em sua direção e, mais perto ainda que ele
estava pude ver cada rosto e identificar, portador por portador, todos eles.
Como rejuvenesceram, pois os seus rostos estavam mais esticados do que égua
puxando carroça! E eu que estava enganado quanto ao êxito na filiação dos
novos, confesso que fiquei feliz com a decisão da diretoria em rejuvenescer os
velhos, ao invés de filiar gente nova! De repente o navio se fundeou na baía em
frente e, pelo adiantado da hora, toda aquela balbúrdia cessou. Reinantes o
silêncio e a escuridão acarretada pelo curto-circuito que provoquei, fui
dormir, mas não consegui me aferrar no sono, temendo um novo “Dia D”. Sonhos e
pesadelos pontearam os momentos de interrupção de minha vigília. Ora eu me via
escondendo deles, ora fugindo dali a nado, ora envergando o melhor dos ternos à
minha disposição e participando daquele décimo oitavo evento. Eu me via
empunhando a bandeira da nossa equiparação aos juízes, bem assim a percepção
das vantagens individuais há tempos subtraídas. Eu me via descobrindo a fórmula
do Elixir da Vida Eterna e com ela garantindo a não redução da arrecadação de
nossa contribuição associativa. Em nossas carteiras o antigo trânsito livre e o
porte de armas e todos os nossos precatórios imediatamente pagos. Mas logo o
pavor invadia sonhos tão bem acalentados e eu sonhava com a velha tina que tão
bem me albergou. Aí eu amaldiçoava o fato de ter batido os costados naquela
paradisíaca ilha, bem assim amaldiçoava a pessoa que ali me agasalhou,
privando-me do direito de morrer em paz. E a amaldiçoava mais ainda por não ter
me provido de meios de sair dali, antes da chegada daquela cambada, ou porque
não quis me levar. Eu sonhava vê-los distantes assim que o sol aparecesse
naquela manhã. Sonhava até que, caso o seu comandante não o fizesse, um
vendaval levasse aquele grande navio para o mais distante possível. Só não
sonhei com aquilo que verdadeiramente ocorreu assim que o novo dia começou. De
repente, não se sabe por que cargas d´água, o grande navio se pôs a afundar e
eu, observando tudo aquilo à distância, entrei em pânico, não obstante minhas
recaídas em renegar a minha antiga turma. Há tempos eu não falava com Deus, mas
a Ele imediatamente recorri, pedindo que fizesse o impossível para salvar
aquela turma. E Ele ouviu as minhas
preces, pois os escaleres se encheram dos passageiros e zarparam antes de o
navio inteiramente se submergir. Só que eu me esqueci de pedir-Lhe para que
outra direção aqueles escaleres tomassem e Ele, não alertado por mim, os fez
aportar justo na pequena ilha onde eu me encontrava. Ao ver aquela horda
atônita e desatinada descer daqueles batelões, a minha primeira reação foi
afundar a cara no travesseiro e fingir-me de morto até que eles partissem. Mas
de nada adiantou, pois refeitos daquele susto inicial, lá vinham em direção à
mansarda, tendo à frente aquela indefectível guia turística, berrando no
megafone da equipagem de salvamento. Não mais a havia visto desde o dia em que
o pirata-mor ficou com ela a troco de um imenso tesouro que me legou, mas horas
depois me foi surrupiado pelos seus próprios asseclas. E eu que até então
alimentava ganas de fugir, mudei de idéia ao vê-la, sobretudo visando
esclarecer melhor o que levou aquele pirata a se interessar por um bucho feito
ela. Vesti então o meu melhor terno, penteei-me elegantemente e fui para a
varanda da mansarda os recepcionar. Assim que se aproximaram, uma gritou:
Carmotinha, quequivocê tà fazendo aí? E todos exprimiam estupefações e
exclamações semelhantes. E aí, a mais bela de todas elas, a mais parceira e
colega, a que namorei e com quem me casei; enfim, a que não deixou a peteca da
entidade cair, tão logo eu a abandonei, exclamou: - Toda essa surpresa só poderia ser feita por você meu amor! E eu que
nem dono da ilha era; e eu que nem bem sabia dizer como fui parar ali; e eu que
não providenciei a aventura de afundar um navio e colocar em terra, a salvo,
todos os seus passageiros, de orgulho me enchi. Por três dias farreamos tanto
que, ao término do evento quase que me esqueci de perguntar à guia o que ela
havia armado com aquele velho pirata-mor. E ela me afirmou que tinha sido por
conta do tesouro. Mas eu redargüi que o tal tesouro havia sido em seguida
arrebatado de mim. E ela, retrucando que não, arrematou: - foi por conta desse tesouro de
mulher que eu trouxe para ti que me entreguei a ele, comprei esta ilha e aqui
te alberguei até trazer a tua verdadeira loura para os braços de ti!
Pos Gran Finale
Não sei por que essa mania da humanidade de registrar seus
feitos. É claro que ela vem de longe, desde os tempos em que antepassados
nossos rabiscavam as paredes das cavernas. Eu nunca havia preocupado em fazer
isso, mas bastou a falta do que fazer e a disponibilidade de um computador e eu
acabei por incidir no péssimo hábito de escrever memórias. Melhor teria sido
que eu não as salvasse ou que o computador tivesse ido a pique quando do
curto-circuito por mim provocado. Mas certo é que cometi a imprudência de
escrevê-las e, sobretudo, deixá-las ali naquela cachola virtual, sem qualquer
senha criptográfica e, por conseguinte, presa fácil da bisbilhotice alheia. E
não deu outra, pois muitos colegas que eu supunha partícipes da homérica farra
de três dias estavam na verdade trancafiados no escritório da mansarda, fuçando
o computador e lendo tudo isto que nele escrevi. Como as escrevi para mim
mesmo, ou para ninguém, inclusive eu, não pus travas em meus pensamentos, nem
me acerquei de cuidados, típicos dos que escrevem memórias, como omitirem fatos
desabonadores de suas histórias ou estórias. É claro que, no meu caso, uma
tentativa de omiti-los acarretaria a absoluta inexistência de fatos a
registrar, pois cada frase escrita deveria ser imediatamente delatada, pela
simples razão de que nunca pratiquei um ato sequer que pudesse ser considerado
como inteiramente sintonizado com os bons costumes, com o ordenamento jurídico
ou com os preceitos religiosos em geral. Aliás, não sou solitário nisso, pois
julgo que a humanidade em seu todo age assim, não escapando nem mesmo aqueles
que ela elege como puros, castos e santos. Mas eu, ao contrário deles, sou um
pilantra assumido. E aqueles pilantras enrustidos e que não têm a coragem de
sair do armário, não só leram tudo o que escrevi, como passaram a me fazer
perguntas capciosas acerta da minha conduta moral, como também me crivaram de
questionamentos sobre pontos do texto que eles consideraram absurdos,
incoerentes e insuscetíveis de acontecer, naquela intensidade, com um ser
humano normal. Eu bem que poderia tê-los mandado para aquele lugar, não
respondendo as suas perguntas. Mas como assenti em retornar ao rebanho
classista, não ficava bem, justo naquele reencontro, cometer tal falta de
educação e coleguismo. Em princípio, tentei enrolá-los dizendo que aquilo tudo
não passava da mais rasteira literatice, eu que por aquele tempo enfiei a cara
nos livros e nos filmes, sobretudo os de minha predileção, como os westerns e
os de aventuras. Mas, apesar da minha proficiente lábia, a conversa não colou e
eles queriam por que queriam explicações e mais explicações, sobretudo no
tocante ao meu papel na beatificação, bem assim o encontro que eu tive com o mais
novo casal real deste Continente. Também parti para uma desculpa típica dos que
são pilhados em patifarias e quis os demonstrar que se encaixava em mim, feito
luva, o instituto da irresponsabilidade penal, mercê da minha visível condição
de louco. Mas, ainda que eles caíssem na minha lábia, eu mesmo me dei conta de
que não era aquela a melhor argumentação, pois ela fatalmente se voltaria
contra mim, enterrando de vez qualquer possibilidade de, por exemplo, eu ocupar
cargos, privado do juízo e da própria condição de gerir a minha pessoa. De
todos eles, a única pessoa que realmente tinha o direito de efetivamente me
tomar satisfações era a minha esposa, sobretudo por eu ter me deitado com
aquela loira de triste memória, além das dezenas que comi em minha curta, mas
exitosa fase empresarial. Ela, sim, detinha o sagrado direito de se zangar
comigo, de me bater e até manejar contra mim um pedido de divórcio, lastreado
em minhas próprias confissões! Acho até que ela, como costuma acontecer com
algumas mulheres em situação igual, poderia até me privar daquele complemento
que, certa feita, na praia, se elevou feito as palmeiras circundantes. Como foi
em sonho, eu, evidentemente, alegaria a atipicidade daquele inusitado
acontecimento. Mas ela nada alegou, nada reclamou, nada duvidou, enquanto eles,
estribados em tênues laços sindicalistas, se viram no direito liquido e certo
de me encher de reparos e observações. E é por isso que acabo por cometer mais
uma infração, das tantas cometidas na vida, que é escrever mais capítulos
depois de um Gran Finale. É óbvio que milita a meu favor o fato de eu não ser
um literato, o que, aliás, pode ser facilmente constatável a cada linha deste
meu sofrido texto. É óbvio que delitos literários não costumam levar pessoas
para a cadeia, senão pichadores pegos em flagrante escrevendo palavrões. Visto
por este ângulo, eu bem poderia não espichar ainda mais o assunto e, de roldão,
este próprio texto. Mas como eles querem e se julgam no direito de arrancar de
mim mais esclarecimentos, que preparem para ouvir...
Eu não minto!
Não sou budista, mas acredito em reencarnação, não como algo
sobrenatural, tampouco paranormal, mas como um atributo tão banal nos humanos
como falar, copular e palitar dentes. Também diferentemente do que pensam os
budistas, creio que a reencarnação não pressupõe necessariamente a existência
de um morto doador do espírito e de um vivente seu recebedor. A reencarnação de
minha crença, sobretudo de minha própria experiência se dá, tanto em corpos
distintos, como num mesmo corpo. No último caso – o mais comum – um mesmo corpo
humano pulsante pode perder o seu espírito, viver sem ele por algum ou por
muito tempo, como também receber outro, outros simultaneamente e até mesmo o
próprio que dele se despregou. Não são raros também casos em que o corpo perde
o seu habitual espírito e passa a ser habitado pelo espírito de um animal de
outra espécie, grande ou pequeno, rastejante, caminhante ou alado. É óbvio que
espíritos de amigos, colegas de trabalho, parentes, vizinhos, amantes, porcos,
galinhas, cachorros, gatos, pulgas, cavalos, bois, passarinhos, lhamas,
camelos, elefantes, cabras, ovelhas, piolhos, ácaros, vermes são os que mais se
alojam em corpos humanos dessa hipótese. Há casos também em que o espírito de um
objeto de estimação – uma boneca inflável, um automóvel ou uma mansão, por
exemplo – dependendo do apego do estimador, aloja em seu corpo e passa a o
governar. Nem todos, mas somente um percentual ínfimo da humanidade – onde me
incluo – consegue voltar para dentro de si e se inteirar da sequência exata de
espíritos pela qual passou, tanto no corpo presente, como em corpos
antecedentes. A maioria das encarnações costuma ser instantânea, mas muitas
duram lapsos de tempo de até décadas, como uma que me aconteceu ao receber o
espírito de Marylin Monroe. Eu, por aquele tempo, não tinha a expertise que
hoje tenho e, por conta de minha ignorância, fiquei em dúvida se eu havia
comido Marylin, o que gerou uma grande confusão em minha vida, culminada em meu
suicídio e na transladação de meu espírito, junto com o dela e vários outros de
menor importância, para este meu atual corpo. Os meus bilhões de leitores
certamente não entenderão o porquê de eu fazer este extenso preâmbulo e não
partir imediatamente para o desiderato do que me propus no fecho do capítulo
anterior, qual seja desmascarar todos aqueles que duvidam de minha história. Chegarei
lá! Mas antes devo elencar essas e outras considerações, imprescindíveis à
excelência dos argumentos que irei brandir em suas caras deslavadas e
deslambidas! Tive o privilégio de, por algum tempo, abrigar em meu corpo o
espírito de Einstein. Penso que ele poderia ter permanecido comigo por muito
tempo não fosse o de Isaac Newton que, não sei por que cargas d águas, deu de
alojar justo em mim. Aí a minha vida virou um inferno, pois os dois brigavam o
tempo todo sobre o movimento do tempo, enquanto a burralda de minha Marylin
interior não entendia bulhufas do que eles diziam. Como o espírito de uma
boneca inflável também se apoderara de mim por aquele mesmo tempo, Marylin o
estapeava, enquanto Albert e Isaac tentavam acalmá-la, chegando certa feita ao
extremo de acuá-la com o espírito de Charles, meu cachorro de estimação. Quase
que enlouqueci, mas, conhecedor desta peculiaridade da humanidade, eu soube
administrar toda aquela confusão sem necessitar de analistas, psicólogos,
psiquiatras e afins. Aliás, por falar neles confesso que rôo de vontade de um
dia receber o espírito de Freud e contar para ele as besteiras que eles cometem
em seu sacrossanto nome. Mas voltando à vaca fria dos espíritos, a própria
linguagem humana é uma prova do que ora falo, na medida em que o vocabulário de
cada um em particular nada mais é do que a soma de espíritos que foram alojando
paulatinamente em seus corpos: em primeiro lugar o espírito da mãe, depois o
espírito do cocô, o da fralda, o da chupeta até chegar ao espírito de todos
outros objetos que vão se incorporando ao longo da vida. Com todos esses
espíritos em um mesmo corpo é que surgem os verbos, os substantivos, os
artigos, os adjetivos, os numerais, os pronomes, os advérbios, as preposições,
as conjunções, as interjeições, as frases, as orações, os períodos, a
concordância, a regência, a crase, a pontuação e as figuras e vícios de
linguagem. Eles nada mais são do que o resultado da briga e do bafafá de
milhões de espíritos que costumam alojar num mesmo corpo. Isso resulta em que a linguagem, ao contrário
do que pensa a maioria, é o pior dos instrumentos nas relações interpessoais,
causadora de guerras, revoluções, brigas e confusões. E seu caráter deletério
deflui necessariamente da forma em que ela – linguagem – é adquirida por cada
falante, escrevente ou pensante: uma maçaroca de milhões de espíritos
verbalizando, adverbiando, substantivando, adjetivando, numerando,
preposicionando, conjugando, interjeitando, regendo, craseando e viciando, tudo
ao mesmo tempo! E já entrando no meu propósito de desmascarar meus abelhudos
colegas, digo que toda a incompreensão deles em relação ao que escrevi – e que leram
sem o meu consentimento – deriva justamente dessa algaravia dos espíritos que
cada um traz em si, de maneira inconsciente. Visto sob esse ângulo, melhor eu
não tentar me explicar, como me propus ao fim do capítulo anterior, pois com
certeza, quanto mais explicações, mais dúvidas, mais inquirições, mais
julgamentos, mais conclusões e mais confusões, enfim! Assim, ao invés de perder
tempo com isso, melhor mesmo é eu bolar um plano de afugentá-los o quanto antes
dessa minha confortável ilha...
O Plano
Com a minha verdadeira loira no cantinho de minha cama, bolar
planos foi algo que sequer consegui astuciar na noite que passou. Mas assim que
o amanheceu, uma idéia lampejou em minha cabeça e eu saltei da cama pronto a
colocá-la em ação, mesmo antes das abluções matinais. Metido na minha longa e
alva camisola de dormir, transpus o imenso corredor, mas antes de chegar ao
pátio da mansão, um coro ecoava o meu nome, entremeado de Vivas a Deus e a
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas! Apressei então o
passo e do alto da escadaria vi os meus colegas em procissão, mas carregando um
andor literalmente vazio. Por instantes supus a ausência de imagem de santo ao
fato de que elas inexistiam na ilha. Mas, tão logo me viram no alto da escada,
gritaram: Salve São Carlin! Salve São
Carlin! e me jogaram sobre aquele enfeitado andor! Petrificado e
bestificado com todo aquele exagero, dei voltas e mais voltas em torno da ilha,
emperiquitado naquela prancha de madeira, cujos colegas se alternavam na sua
condução. A minha cabeça se esforçava em adivinhar o que fiz de tão prodigioso
para alcançar a santidade. Alcançar a santidade simplesmente em vida, coisa que
nem Jesus Cristo conseguiu e que o próprio Papa que ajudei canonizar teve que
esperar mais de ano! Pensei no adjutório que dei em tal canonização, ao revelar
o milagre que se deu comigo, completando a cota miraculatória que faltava! Mas
achei isso sem força suficiente para me galgar não apenas ao posto de santo,
mas do primeiro santo vivo da Santa Madre Igreja! Além do mais, eles próprios
que haviam acabado de me canonizar eram os mesmos que ontem duvidavam de tudo o
que escrevi no computador, inclusive da minha participação na canonização do
Papa! Pensei que eles, aos escutarem por toda noite nossos gritos de amor,
feito eu também recuperaram as suas perdidas tesões e, em razão disso, me
atribuíram aquele milagre. Louco para me apear daquela prancha enfeitada e
passar a limpo toda aquela confusão, eis que surge de uma das janelas a minha
verdadeira loira, toda vestida de anjo, inclusive com um radiante par de asas e
faz aumentar ainda mais a minha curiosidade e aflição. Aí pensei: se ela que nunca falhou comigo está agindo
assim, eu de fato fiz por merecer a minha canonização! Confesso que, pela
primeira vez na vida, desejei a minha morte, não por desespero, mas pela
perspectiva de imediatamente me mandar para as cortes celestiais e lá gozar de
meus privilégios e prerrogativas santificais, deixando aquela cambada ali na
ilha. Como a minha loira estava apta a voar, eu não ficaria sem ela e perfeito
restaria o plano que nem bolei! Então fechei os meus olhos e pedi que Deus me
levasse. Com os olhos inteiramente cerrados, notei que o andor de repente
deixou de dar voltas e passou a andar em linha reta. Em seguida, percebi que
ele foi posto em algo parecido com uma canoa. De olhos fechados notei que ela
se pôs a navegar rapidamente, enquanto um vento forte, misturado à areia,
impedia-me de abrir os olhos. Quando finalmente os consegui abrir, eu já não
via nem ilha, nem colegas, nem a minha Anja Loira! Prontamente conclui que em
lugar de eu urdir um plano para afugentá-los da ilha, eles, sim, é que bolaram
um e que resultou em meu desterro naquele andor flutuante. Dei uns bons gritos
de filhos da puta, mas a minha indignação se dirigiu imediatamente na direção
da minha Querida Loira. Como? Por quê? O que fiz? Não acredito! É um pesadelo!
Ela enlouqueceu! Será que em sonho bradei o nome de outra! Será que em gozo
gritei por Marylin? De repente parei de lamentar e, sem saber para que lado
ficara a ilha, me pus a dar voltas em torno do andor, olhos postos na linha de
mar circundante. De repente, ao longe, um pontinho branco apareceu e o meu
coração se alegrou: É ela, com seu par de
asas, vindo ao meu encontro! E o pontinho foi aos poucos se definindo,
sendo possível notar o seu bater de asas. Então fechei os olhos novamente,
elevando o meu gratíssimo pensamento aos Céus, certo de que em minutos a minha
Loira Alada pousaria em nosso barquinho-andor, para que juntos pudéssemos
navegar rumo a uma paradisíaca ilha naquele mediterrâneo mar, longe daquela
cambada de ingratos colegas! Logo, o arfar de asas finalmente alcançou os meus
ouvidos, mas antes de os meu olhos abrir, senti em minha careca a queda de uma
pelota pegajosa e fedorenta, pois uma gaivota simplesmente me cagou! Aí me desesperei novamente e me joguei rumo
ao fundo do mar. Desci, desci, mas o meu fôlego parecia se encompridar e eu não
conseguia me afogar. Vários minutos sem conseguir concretizar o intento de me
matar, submergi e alcancei a borda da canoa. Subi e quando me pus de pé, vi a
minha verdadeira loira se afastar, batendo com força as suas asas. Eu gritava
que eu não havia morrido, mas ela, de costas para mim e certamente desesperada,
não me ouvia e mais se afastava. Eu torcia para que ela olhasse para trás, mas
nada, e ela desapareceu na linha do mar.
No Céu
O peso da minha mágoa era tamanho que eu temia o barquinho
afundar. Mas o alívio por não ter sido traído pela minha Adorável Verdadeira
Loira compensava tudo e o barquinho singrava rapidamente o mar. Não era a
primeira vez que me via na condição de náufrago! Em todas as outras eu me safei
e não seria naquela que eu iria me estrepar. Mas as mágoas foram se dissipando
uma a uma, como que varridas pelo vento forte e eu, diferente dos naufrágios
anteriores sentia-me calmo e tranqüilo como jamais me senti em toda a minha
vida. Estirado de barriga para cima naquele estrado de madeira todo enfeitado,
eu cantarolava sobretudo trechos de óperas, como aquele em que Otelo e
Desdêmona cantam o seu amor numa noite na ilha de Chipre. Mozart punha em minha
boca Cosi Fan Tutte, mas eu me recusava a cantá-la, pois nem todas as mulheres
agem como ele pensa, e a minha Loira é a prova disso. Eu também recusava Bizet,
pois a minha Loira não é abusada como a cigana Carmen. De repente eu me
levantava, aprumava meu corpo equilibrado naquele andor e deixava que o vento
esvoaçasse a camisola de dormir em que eu estava vestido. E assim altivo, mas
calmo e tranqüilo eu singrava aquela imensidão de mar. Meus cabelos e minha
barba cresceram prodigiosamente, mas apesar da brisa salgada e do sol forte,
sentia-os lisos, sedosos e perfumados, não aquela cafuringa dos naufrágios
anteriores. Notava até que a minha pele ganhara viço e cor, mesmo eu estando
naquelas condições tão adversas e ainda por cima sem comer ou beber. Eu
simplesmente estava sendo poupado do flagelo de ter fome, além de inteiramente esvaziado
do estoque de raivas, ódios e ressentimentos que acumulei ao longo de minha destrambelhada
vida. Volta e meia, aves marinhas revoavam sobre o meu barquinho, desenhando
lindas coreografias no céu e cantando alegremente. Elas se alternavam pousando
doce e sossegadamente em meus ombros. Golfinhos e outros peixes, saltando ao
redor do barquinho, completavam aquele lindo quadro, enquanto os sons do mar
chegavam aos meus ouvidos como a mais delicada de todas as sinfonias. À noite
eles, peixes e pássaros, eram substituídos na coreografia pelo piscar alegre
das estrelas, pelo riso num canto da boca da lua e pelos milhares de meteoros
que riscavam o céu, desenhando palavras e frases me louvando e me glorificando.
Toda aquela desassombrada guinada em minha vida poderia ter me levado à
inexorável conclusão que de fato eu fizera por merecer aquela procissão. Tudo
sinalizava que de fato eu havia ascendido à condição de santo. Mas santos
sempre chegam a esta condição quando morrem e muitos anos, décadas e séculos
depois de morrerem! Nesse mesmo contexto, seria plausível que eu me pusesse a
refletir se eu, sobre aquela canoa, estava de fato vivo ou se eu já estava
morto. Plausível também seria supor que aquele mar circundante não era terreal,
mas celestial. E assim me supus, como que eu estivesse sido transladado pelo
Deus Mórmon para as plagas celestiais. Quando a procissão caminhou em linha
reta, ela não me lançou feito um traste que se joga ao mar? Em verdade, eu fui
arrebatado rumo aos céus, feito Maomé, ele embarcado numa carruagem de fogo e
eu num barquinho todo enfeitado? Mas eu nada supunha nem desejava. Tudo em mim
era quietude e mansidão. Tudo estava bom. Tudo estava ótimo e não havia espaço
para algo questionar. Vivo ou morto, pouco importava, certo é que eu jamais
experimentara uma paz interior tão completa e intensa. E assim, eu e o meu
barco, deslizávamos docemente por aquela imensidão de mar azul! Por todos
aqueles dias de navegação, não avistamos um palmo sequer de terra, mas certa
manhã avistei uma garrafa pet boiando por perto. No céu da maioria das
religiões um objeto dessa natureza é inteiramente incompatível, mas me lembrei
de que no dos Mórmons uma garrafa pet é plenamente suscetível de ser encontrada
em um mar celestial e, por isso, sosseguei. Mas, mais adiante, avistei outras
garrafas boiando, sacos plásticos, camisinhas, lataria de carro e lixos de
todas as espécies. Admiti num primeiro momento que o emporcalhamento de que foi
vítima a Terra acabou por contaminar o próprio céu. Navegando mais
sofregamente, por conta de tanto lixo batendo em sua proa, minha canoa seguiu
seu rumo e eu, aos poucos, fui dando conta de que estávamos próximo ao litoral,
pois centenas de torres de igreja (contei 365 pares delas) surgiam na linha do
horizonte. Aí pensei: com tantas igrejas, estamos chegando realmente ao Céu! Aí
me alegrei novamente. O barquinho continuou aproximando e eu me extasiando com
a chegada a uma baía linda, embora tomada pelo lixo. Mais perto, vi que a
cidade em sua orla estava em festa e, em razão disso, todas aquelas garrafas em
minha volta se justificavam. Aí eu me levantei sobre o enfeitado andor e,
vestido em minha longa camisola branca, ajeitei meus longos e sedosos cabelos,
enquanto o barquinho se aproximava da praia. Uma imensa multidão parecia me
esperar. Caminhões gigantescos, dotados de potentes amplificadores de som,
carregavam animados músicos. Apesar do nauseabundo cheiro de urina, eu me
regozijava com aquela apoteótica recepção e finalmente conclui que eu me
transformara em Jesus Cristo. Sim! Cristo havia se encarnado em mim. Somente eu
não havia me dado conta disso! Meus colegas, sim, tanto que me consagraram
naquela procissão. Minha mulher também, tanto que não quis me seguir, ciosa de
que não ficaria bem um Cristo casado, ela que não tem nenhuma vocação pra
Madalena. Os pássaros marinhos, os peixes e as constelações. E agora aquela
multidão que se espremia em todas as praias, na cidade baixa, na alta e até em
seu pelourinho, todos me tomando pelo Messias e somente eu sem me dar conta
disso! Finalmente o barro enterrou sua proa na areia e dele eu desci, certo de
que a multidão me arrebataria sobre o andor, conduzindo-me por aquelas ruas,
avenidas, terreiros e ladeiras em apoteótica procissão. Parado fiquei, pois
ninguém sequer se atreveu a me olhar, senão um vendedor de picolé que comigo
falou: - Que porra de fantasia irada, meu rei!, e uma vendedora de acarajé que
disse que o meu andor era mais enfeitado do que jegue na Lavagem do Bonfim! Só
então eu me dei conta de que havia chegado em Cu de Gato, justo naquela que foi
a sua primeira Capital!
Fingindo de bobo
Como me filiei ao partido do destino, isso muito antes de
minha santificação, achei por bem não me precipitar e tomar satisfações com
aquela gente que me ignorava. Tal qual sucedeu ao meu Antecessor, tudo aquilo
fazia parte de um plano traçado pelo nosso Pai. Aí eu próprio pus o andor em
minhas costas e comecei a andar pela cidade. Quase todos me ignoravam, exceto
uns, dentre eles um pastor e um padre, que protestavam contra aquilo que
imaginavam ser uma fantasia de carnaval. Cheguei a tentar me descansar sentado
na escadaria de uma grande igreja que levava o meu nome, mas o Cardeal
determinou que eu saísse dali. Procurei abrigo num templo evangélico, mas dele
fui enxotado, não só por não poder pagar o dízimo e as ofertas, mas sob o
argumento que eles não admitem que eu seja representado por imagens ou
figurações. Aí então eu apelei para o que eu sempre soube fazer e que inclusive
garantiu a minha fama dois mil anos atrás. Mas nem milagres que ali operei
fizeram com que eles enxergassem em mim o Enviado de Deus! Salvei um
sexagenário cantor de axé, com um pano amarrado na cabeça, segundos antes de
ele ser vitimado por um infarto fulminante. Consertei o gerador de um trio
elétrico no instante em que ele entrou em pane. Impedi um temporal que desabaria
sobre a cidade. Curei a rouquidão de uma cantora quase de bunda de fora, mas
nada disso foi notado por eles. Aí eu barbarizei e transformei em Canabis toda
a grama da cidade e retive por três dias o fluxo urinário de todos os homens, a
fim de que não mijassem nas ruas. Por último, operei o milagre da multiplicação
de cacetes, cacetinhos, varas e acarajés. O meu ego cugatense sabia que
carnaval dura três dias, mas que naquela cidade isso se multiplica por cem. Mas
o Meu Outro Ego imaginava que tudo se normalizaria três dias depois, relevando
e perdoando toda aquela festa mundana, mesmo porque ela entrou no calendário
cristão como forma de todos se esbaldarem nas vésperas da quaresma. Então me
acalmei e aguardei a ansiada quarta-feira de cinzas, certo de que eu seria
finalmente notado e finalmente seria entronizado naquele andor e carregado
efusivamente pelas ruas da cidade, do Estado, do País e de todo o mundo. Quarta-feira
finalmente chegou, mas o furdunço continuou mais intenso do que antes,
arrastando milhões de ensandecidos foliões pelas ruas, como que amarrados
feitos cachorros na traseira daqueles imensos e barulhentos caminhões. E assim
quinta, sexta, sábado... o mesmo turbilhão ensandecido me ignorando, me
enxotando, me ridicularizando, até que ergui meus olhos aos Céus e bradei: Pai, afasta de mim este cálice! Meu
grito foi ouvido pela banda que tocava sobre o Trio Elétrico e eles, na hora,
pediram que eu continuasse cantando aquele velho sucesso de autoria do Gil. Eu
não queria subir no Trio, mas a multidão me arrastou. Meu Eu Sagrado não queria
cantar, mas o eu profano fraquejou e não resistiu ao coro “Canta!”...
“Canta”... abriu o vozeirão e balançou a multidão. Cantei a noite toda em
vários trios, inclusive no Expresso 2222. Eu simplesmente me tornara a
revelação daquele Carnaval, mas algo de anormal abateu sobre mim, pois em pouco
tempo meus longos e sedosos cabelos voltaram ao desgrenhado de antes, inclusive
a minha velha careca, a minha pele perdeu o viço, meu semblante terno e doce se
modificou e a minha alva túnica, que se manteve por todo aquele tempo limpa e
passada, encardiu e se esmolambou. Aí a minha ficha caiu: Cristo simplesmente
me abandonou! E a galera, me vendo tão diferente do que instantes antes eu era
me fez descer do trio e quase que me linchou.
É claro que eu estava amando ser o receptáculo do espírito de
Nosso Senhor. Quem não gostaria de ser a reencarnação Dele, ou de Buda ou de
qualquer um destes Seres Luminosos que passam pela Terra, de milênio em
milênio? Penso que fiz tudo certo, desde o momento em que Ele se alojou em mim.
Agi com ternura e doçura. Dei a minha outra face. Sofri resignadamente. Só
pensei e fiz coisas boas. Mesmo o fato de ter subido no Trio Elétrico, não o
fiz por vontade própria, mas sim obrigado. A bem verdade nem cantei, pois eu,
como todos que se apresentam ali, “cantava” em play back. Além do mais, Ele,
que tantos milagres é capaz de operar, bem que poderia ter me impedido de subir
no trio. Além do mais, em seu tempo no Oriente Médio Ele próprio andava em
companhia de mulheres de vida airada e animava festas transformando água em vinho.
Digo isso, para afirmar que Ele, ao me abandonar, foi injusto, contrariando
tudo que grande parte da humanidade pensa Dele. Já ia ruminando tais
pensamentos, quando uma hipótese faiscou em minha mente! Cristo, na verdade,
não fugiu de mim! Cristo fugiu, sim, daquela cidade louca, Cristo fugiu de Cu
de Gato, Cristo fugiu deste mundo sem conserto, enfim! Exonerado daquela
sacratíssima função, fiquei a andar pelas praias, ora batendo carteiras, ora
trançando tererês. Mas o meu maior sonho era juntar dinheiro e ir direto para
junto da minha Adorável e Verdadeira Loira. Nem precisei dinheiro juntar, pois
no dia de ontem, ao passar por uma sentada numa cadeirinha de praia, não
acreditei, mas era ela que estava ali!
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